Tenho lido nos últimos dias o mais recente livro de Wilton Bezerra. Trata-se de “Causos e Crônicas”, editado pela Expressão Gráfica e Editora, em 2023, com apurado projeto gráfico de Eduardo Freire, prefácio de Paulo Quezado e posfácio de Tarcísio Matos.
Com esse time de cobras, já dá para ganhar a torcida dos leitores. Os causos são novos e parecidos com os dos dois livros anteriores. Acontece que nesse livro terceiro, há uma novidade na escritura wiltoniana. Suas crônicas são o grande atrativo da obra.É como um clássico de campeonato.
Isso acontece porque nos causos tudo se dá como em início de campeonato, o jogo transcorre, o torcedor já sabendo quem vai ganhar. É um astrólogo aloprado, uma fantástica Maria Caboré, uma estranha quitação de dívida, um motorista sem dentes, um caçote que trai um acordo e uma campanha política com poesia. A gente ri com os mesmos dentes dos livros anteriores, apenas dos personagens renovados: Otacílio Correia, Praxedes, Croinha e Sulino Duda. Quando ele cita Zé Felipe, remete-nos a Zé Mandinga e Miguel Mandinga, dois irmãos motoristas de caminhão, que entraram no folclore das estradas lá de nós.
Depois desse trajeto que ainda inclui violeiros, jogadores e políticos, e trafegar, matando de rir, entre Várzea Alegre e Juazeiro, é como se tivesse nos guarnecido das entradas para servir o prato principal. Aí vêm as crônicas que exigem boa mastigação, digo reflexão.
Afinal, Wilton é primeiramente um fino cronista. Seu estilo rodrigueano de opinar passa a por o leitor para pensar. Com certeza Wilton Bezerra leu Nélson Rodrigues ou foi incorporado por aquele genial torcedor do meu Fluminense, teatrólogo e finíssimo cronista.
Este Wilton, cronista conterrâneo, que deixou o cordão umbilical enterrado em um pé de cerca lá no Cedro e os dentes de leite jogados no telhado ao som de um "mourão, mourão", se apresenta como excelente escriba. Começa com essa genial crônica, "Os deuses não morrem", em que mistura Miguel Nicolelis com Tom Jobim, vai buscar em Minas Dona Celeste e Seu Dondinho, para através de Nélson Rodrigues, coroarem o Rei Pelé. Podia parar por aí, deixar de ser comentarista de futebol e se dedicar ao ofício de cronista, diante da ausência que temos hoje de adeptos do deus Cronos.
Pelé é seu ídolo. Nem precisava mexer com Albert Camus e Eric Hobsbawm para provar que tem leituras. Wilton esbanja saberes, cria linguagens. Essa de dizer que "o futebol brasileiro continua a fornecer 'pé de obra' altamente qualificado para o mundo", extrapolou limites. Primeiro me mandou ao dicionário do Antônio Houaiss em que a palavra não existe, mas escritor é criador de palavras.
Como mão-de-obra possui dois hífens, sugiro que essa palavra de sua criação também os receba. Tem mais: vou levar o termo à Academia Cearense da Língua Portuguesa para encetar campanha e levá-lo à ABL para oficializá-lo nos dicionários.
Esse novel cronista esbanja saberes, e saberes com sabores. Traz coisas e referenda belamente de roupagem nova. Essa de Nei da Conceição dizer que "o futebol atual deveria ser menos atual" é demais da conta no contexto novo em que foi colocada. Mas não fica só nisso.
Quando dá receita de bem viver, é um sábio e ao mesmo tempo um sátiro. E preciso gozar da morte para tocá-la para a frente. Sei que o Tânatos não aceita homenagens, mas não custa nada fazer uma cosquinha dele para ver se ele se "lírica". Aliás, essa palavra eu criei aqui, já sofrendo influência desse escriba peso pesado.
Wilton Bezerra fala de felicidade cotidiana, colocando-a ao lado da imaginação como moda. Depois tempera com saudade que é a presença de quem está ausente, e grita aos sete reinos: - Acorda, humanidade! Que salada de temas e tramas para pegar leitor! Depois, quando mexe na política, acena para uma "democracia líquida". Quando os áulicos das previsões falam que o futuro é agora, este cronista pergunta como ficamos com "os sonhos com o futuro". Aliás, nossos sonhos estão sempre à frente nos esperando, fazendo piruetas. Alcançá-los é outra coisa. Daí ele dá a dica, o negócio é pensar pouco, mas sem deixar de sonhar.
Há uma característica fundante na escrita de Wilton, é o humor. Para ele, papo pobre é negócio sem graça. O negócio é cerveja e conversa sobre poesia e virtude. Que bela dica! Quando fala sobre distrações, lamenta não ter entrevistado Armando Nogueira, Luiz Fernando Veríssimo e João Ubaldo. Nessa eu ganhei, pois papeei com o tal Veríssimo em Recife. Tímido e de pouca conversa, mas me contou que assistiu Feline gravando Anitona se banhando na Fontana de Trevi numa madrugada de Roma. Senti inveja. Mas inveja faz bem, faz a gente lutar para chegar ao pedestal do outro. Um dia farei crônica igual a Wilton Bezerra.
José Batista de Lima (Lavras da Mangabeira, é um professor e escritor brasileiro. Ocupa a cadeira nº 2 da Academia Cearense de Letras, e ocupa a cadeira nº 36 da Academia Cearense da Língua Portuguesa
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