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A maturidade de uma cinematografia nacional se mede pela distância
entre seus filmes. O contrário disso seria a sujeição a um único gênero,
o tédio imperdoável da representação única de um país. Nada mais
inapropriado para o cinema brasileiro, fabricado num vasto território
cuja grande vantagem civilizatória é a diversidade de manifestações
regionais, étnicas, culturais, suas diferentes geografias física e
humana. Mais do que uma forçação de barra, seria um crime cometido
contra nós mesmos. Um suicídio cultural.
Um exemplo dessa saudável distância em um mesmo universo está em
cartaz no país. De um lado, o belo e sofisticado filme de Bruno Barreto,
Flores raras; na outra ponta desse mesmo espectro, Cine Holliudy, a
surpreendente comédia antropológica de Halder Gomes.
Flores raras conta a história do encontro entre a poeta americana
Elizabeth Bishop (Miranda Otto), ganhadora do Prêmio Pulitzer de poesia,
e a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares (Glória Pires), criadora
do Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro da passagem dos anos 1950 para
os 60. Com uma encenação luminosa e delicada, Bruno Barreto não só nos
narra a história dos sentimentos entre essas duas mulheres formidáveis,
como nos traça também um impecável retrato da sociedade carioca e
brasileira daquele momento de transição.
A Bishop cai na malemolente teia sedutora do Brasil quase que por
acaso. Ela veio apenas visitar rapidamente uma amiga brasileira que,
naquele momento, vive com Lota em Petrópolis, e acaba se apaixonando por
essa. O que o filme nos mostra não é apenas a densa história de amor
entre as duas mulheres; mas também a difícil conquista da poeta
contrariada, pelo país que observa com imenso espirito crítico, como
alguém que reage à atração por algo que sabe que não lhe fará bem.
Essa droga cultural do excesso e do jorro vicia Elizabeth, que, já
vivendo no país, escreve esse verso irritado e contundente, no poema
Questões de viagem: There are too many waterfalls here (numa tradução
livre, aqui tem cachoeiras demais). Inaugurando sua carreira
internacional no último Festival de Berlim, Flores raras ganhou o prêmio
de público da sessão Panorama, repetindo a mesma premiação em Tribeca
(Nova York), Los Angeles e San Francisco. Agora está em cartaz por todo o
Brasil.
Um filme que é também de Lucy Barreto, criadora do projeto e sua
produtora, Flores raras é mais do que o retrato de duas grandes mulheres
apaixonadas (no qual se destaca a interpretação visceral de Glória
Pires). Ele é também a história de uma tragédia cultural, da
incapacidade de alguém se entender com um mundo em mudança, diferente do
seu. Com solidariedade crítica, Bruno Barreto nos dá esse belo filme em
defesa da diferença e da necessária tolerância, do universo privado ao
público.
Na outra ponta desse nosso cinema, Walder Gomes, cineasta cearense,
dirigiu e produziu Cine Holliúdy, que por enquanto se encontra em cartaz
apenas em Fortaleza e mais algumas cidades do Ceará, onde foi realizado
na cidade de Pacatuba. Inspirado em curta-metragem de seu diretor, uma
comédia que não tem nada a ver com as comédias urbanas do eixo Rio-São
Paulo que estamos acostumados a ver, Cine Holliúdy reinaugura com
inteligência e perspicácia um gênero regional que já foi cultivado por
Amácio Mazzaropi, por exemplo.
Falado em cearensês com legendas em português, esse filme nos conta a
história de Francisgleydisson (nome tão cearense, diz um personagem),
um amante de cinema que tenta resistir à chegada avassaladora da
televisão ao interior do Brasil, naquele início dos anos 1970, outra
data de grandes mudanças culturais.
Mais do que uma comédia despretensiosa, Cine Holliúdy registra uma
antológica coleção de personagens originais e seu comportamento.
Francisgleydisson (Edmilson Filho, comediante digno da tradição cearense
de Chico Anísio e Renato Aragão), instalando uma sala de cinema em
Pacatuba, se cerca de moradores que vão do prefeito ao bêbado da cidade,
do chefe da oposição ao cego que pretende ver o filme (um genial
Falcão, o cantor, de cujo personagem alguém diz que pelo menos ele não
paga nada à vista), num empolgante corte antropológico de certa
civilização brasileira nem sempre visível a todos os olhares do país.
Cine Holliúdy já foi visto por quase 200 mil espectadores, só no
Ceará, e chegará em breve às salas do resto do país. Com uma média de
2.300 espectadores por cópia, o filme de Halder Gomes bateu o recorde
local de Titanic. Barato, mas sem perder nada de sua qualidade técnica,
cheio de curiosos efeitos especiais, Cine Hollyúdi é um exemplo de que o
cinema se faz de várias maneiras, e em todas elas o filme pode ser bom.
Nesse caso, ele estimula a multiplicação dos editais de BO (baixo
orçamento) promovidos pelo Ministério da Cultura, cada vez mais
bem-vindos.
Cine Holliúdy e Flores raras são testemunhas excepcionais da
vitalidade do cinema brasileiro e das diversas opções que ele tem pela
frente. É preciso ir vê-los.