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Essa gente cor de noite sem estrelas
de Nonato Albuquerque
Quem é essa gente que, ao luzir do cruzeiro,
ecoa no lado de cá dessa América,
um lamentoso canto de tristeza e dor?
Que vem empilhada em porões de navios,
vendida em praças, leiloada a senhores
cujos nós dos dedos não conhecem
as atitudes humilímas da cortesia?
Não sabem suas vozes, o som sereno
da resignada sorte,
as nuances do sentimento crístico.
nem seus incestos rancores permitem às idéias
o menor acento de comiseração humana.
Que raça é essa nascente do grito
que o força o calor de duras chibatas,
abrindo vergões profundos na pele de ébano,
sangrando esse rio, cujo leito são veias
que se apertam ao menor acento de queixa?
De onde vem essa cambada de animais, ditos homens,
que usufruem das rendas desse odioso tráfico?
Que falam palavras que, se escritas fossem,
converter-se-iam em números e cifras;
cujo documento único é a reprovável amostra
de suas mazelas, seus engodos, suas farsas
- Títeres de meia tigela!...
De quem são esses corpos tombados sem bala,
sem o perdão inoportuno de extremas unções,
sem o gozo suspiro de inocentar as culpas
que não lhes dizem respeito, pois dever não lhes cabem?...
Esses andrajos expostos aos olhos da cara,
encobrem trapos de carne que mais parecem
noturnos descidos inapelavelmente
sobre as esquinas de todas as malsinadas sortes.
Dissimulam ocultar esses vermes, que feridas
incruentas conseguiram fazê-las?!....
Restos de carne! Rostos de homens
que se olharam nos espelhos da suprema derrota,
cingiram as rugas da maldição imposta
lavaram-se no suor forçado de seus arbítrios
e se enxugaram ao sangue de muitas árduas lutas...
Esses rostos não têm nome.
Esses corpos não têm identidade alguma...
Amanheceram aqui, numa noite que se eternizou
todos esses anos...
Vieram do mar, em ambulantes masmorras,
caraveladas pelo vento insípidos de tirânicos poderes;
sob o giro dos chicotes dos feitores;
sob o veneno da tortura de opressos carrascos;
no grito assustador de vozes
sem nenhuma sombra de piedade...
Verdadeiros lobos a acoitar no covil de suas imprecauções
as armadilhas dispostas a todos esses cordeiros;
a negarem a possibilidade da profecia;
a mutilarem o domínio do silêncio dos que sofriam
suas perdas...
Vieram retirados de seu mundo, seu "habitat" natural,
à custa da violência gritante de suas vidas mortas
e armazenados, como lixo, em paiós pútridos;
infernizado nesse chão à duras penas...
Braços e mãos impossibilitados de algum aceno ao partir,
sob o peso de enormes correntes!...
Partir, nos rumos que jamais conseguiram deduzir
a simplicidade sincera de suas mentes.
Hoje, alimentam as terras que jamais serão suas,
Colhem, sob o olhar insultuoso de hediondos capatazes,
o pão que jamais conseguirá adormecer suas fomes...
Essas mãos e esses braços, cor de noite sem estrelas,
misturam, no plantio da terra, semente, suor e lágrimas...
E esse chão bebe à gosto, toda essa indiferença!...
Esses pés, que pisaram essa terra sem vontade,
se ferem na aspereza das pedras mudas;
no silêncio contido dos espinhos;
à passagem humilhante de botas empoladas
desassossegando os ouvidos que só
conseguem distinguir aqui
os cantos lúgubres de improvisadas alcovas;
o choro mofino e irreprovável das vozes que nascem
e que, num gesto de mais profunda intuição,
protestam contra a maldição lançada sobre suas cabeças.
amadurecendo, em cada fio, a prata do amargurado pranto!
Quem é essa gente, vestida de silêncio,
que rumina esses pastos verdejando esperanças?!...
Que se embriaga nas conversas sem tino?!
no contar dos dias que ainda lhe restam;
e, ao sereno da noite, no infortúnio de seus coitos,
unem suas carnes às carnes de outros sexos?...
Gente sem instante algum para guardar
respeito ao pecado,
dorme suas intranquilidades sob o excesso das forças encurvadas;
consumidas nas horas de moeda de cana,
nos alpendres das casas de farinha,
nas lavagens das casas grandes...
E essas mulheres,
que desprendem de suas rotas vestes, os seis emurchecidos
e amamentam os frutos de suas horas de gozo
e ainda encontram nos abismos de suas gargantas mortas,
as vozes para embalar com cantilenas doces,
o sono tranqüilo dos filhos dos patrões, seus donos?
E essas mulheres, que não sabem palavras
mas que seus gestos professam a sabedoria
oculta de todas as verdades?!...
Essas mulheres de carapinhas brancas,
que não conhecem as coisas lá de fora -
o vai e vem das salas grandes, onde nos dias de festa
se reúne, impávida e insensível,
a elite dos senhores de engenho;
as damas da corte e os cavalheiros vindos de longe
à cara de gloriosos dotes -,
essas mulheres, nem de longe conseguem imaginar
o fausto e as riquezas orgíacas que imperam
solenemente, nos corredores dessas casas;
por trás dos balcões
e no aconchego de suas alcovas
onde o ouro se exibe generoso e farto!...
De onde vêm essas vozes que cantam e gemem?
Que gritam ao Deus de todos os homens
a sua prestimosa ajuda;
que falam, em desespero, das terras onde nasceram
e cochicham temerosas aos pés-de-ouvidos de cada um,
a sua revoltada mágoa...
Vozes que respeitam os que conseguiram escapar
a essa prostituída vida que amortalham,
recebendo de noite, os avisos... os encostos
os espíritos que se manifestam
em meio a desgraçada sina...
Vozes dos mortos, tombados no martíro das resistências
aos grilhões tirânicos;
na tentativa de salvaguardar suas almas
(pertencentes a outro dono!...)
Vozes dos pretos, que trazem de volta
as mensagens de conforto
e a obsequiedade permanente de ajuda;
na miscinegação da nova língua e de seus dialetos afros...
Dessas vozes e desses cantos trôpegos
surgiu a essência de novas seitas,
no sincretismo de culturas, só invulgares,
aos que chancelam a imssibilidade de compreendê-las.
De onde são esses negros fugidios desse regime de força,
que achou de encorajar sistemas modernos de opressão?
Que fizeram esses homens para correrem na fuga
essas léguas intermináveis
E se embrenharem nas matas
e construírem quilombos
e buscar, incansáveis, esse sol posto chamado LIBERDADE!...
Que sol é esse que não se descortina
que parece se realizar ao peso dessas nuvens?...
Homens-bichos,
Que não tiveram as chances das escolas,
nem leram nos livros da sabedoria
o suprasumo das grandes verdades;
mas que escolarizaram em suas mentes,
o saber mais pleno de que a Justiça
é a pedra basilar e ao mesmo tempo
os pilares de todas as Ciências e Doutrinas,
a exigir de cada um o acesso livre
no tráfego de suas dependências...
Dependências que eximem toda forma
de gratúita irresponsabilidade
e que se estima, no profundo relacionamento
do amor para com todos...
Essa gente sem nome
que ganhou da História identidade,
prenunciou como nunca,
o estado de inconsciência coletiva
dos que viriam mais tarde
a reeditar por outros meios e formas .
o erro inestimável de outros tempos...
Essa gente negra, escravizada ao sonho
dos ardís mais reles
se amparou no consolo da paciência
e se deteve na espera do seu momento breve - a liberdade.
Essa gente negra
viveu na carne embrutecida
as lições que, talvez, não pudessem transmitir aos outros,
através de todas as palavras...
Primeiro Prêmio no III Festival de
Poesia Cearense,
realizado pela Associação de Artes e Cultura Cearense
e
publicado no "Poemas Novos",
das Edições Grupanos,
sob a coordenação de
Marcel Mendes